Performatividade e identidade do professor universitário

Alcione Ziliotto*
Odilon Luiz-Poli**

       Recepción: 27/07/22.
     Aprobación: 20/08/23.
       Publicación: 1/02/24.

Resumo

A presente pesquisa, organizada na forma de um estudo de caso em tres instituições brasileiras, objetiva analisar como os professores universitários estão reelaborando a sua identidade profissional frente às pressões e exigências das atuais políticas da educação superior. Identifica como tendência, que os gestores das instituições incorporaram muitos dos princípios que caracterizam o gerencialismo e a lógica da performatividade. Os professores percebem uma profunda transformação na docência, mais complexa e desafiadora, com mudanças significativas do seu papel e um aumento nos níveis de estresse. Ainda assim, ao avaliar sua experiência profissional, expressaram sentimentos positivos em relação à docência.

Palavras chave: identidade docente, performatividade, avaliação na educação superior, políticas educacionais, Brasil.


Performatividad e identidad del profesor universitario

Resumen

La presente investigación, organizada en forma de estudio de caso en tres instituciones brasileñas, tiene como objetivo analizar cómo los profesores universitarios están reelaborando su identidad profesional frente a las presiones y exigencias de las actuales políticas de educación superior. Identifica como tendencia que los gestores de las instituciones han incorporado muchos de los principios que caracterizan al gerencialismo y a la lógica de la performatividad. Los docentes perciben una profunda transformación en la docencia, más compleja y desafiante, con cambios significativos en su rol y un aumento en los niveles de estrés. Aun así, al evaluar su experiencia profesional, expresaron sentimientos positivos sobre la docencia.

Palabras clave: identidad docente, performatividad, evaluación en educación superior, políticas educativas, Brasil.


Performativity and Identity of University Professors

Abstract

This research, organized as a case study in three Brazilian institutions, aims to analyze how university professors are reformulating their professional identity when facing the pressures and demands of current higher education policies. It identifies as a trend that institutional leaders have incorporated many of the principles that characterize managerialism and the logic of performativity. Teachers observe a profound transformation in teaching, which is more complex and challenging, with significant changes in their role and an increasing level of stress.

Keywords: Teaching identity, Performativity, Evaluation in higher education, Educational policies, Brazil.


Introdução

No Brasil, a avaliação da educação, no bojo das reformas políticas empreendidas com maior vigor, a partir da segunda metade da década de 1990, tornou-se central nas políticas educacionais em todos os seus níveis. No século XXI, a avaliação segue consolidando-se como a mola mestra das políticas educacionais, utilizando-se de exames aplicados em nível nacional, enfocando o desempenho cognitivo de alunos.
          Por esse mecanismo, tanto as instituições quanto o trabalho dos docentes, são avaliados com desdobramentos que podem incidir em quase todos os aspectos da vida institucional, desde a possibilidade de ofertar ou não, novas vagas dos cursos, até as oportunidades de financiamento estudantil (Dias Sobrinho, 2010).
          Dessa forma, mesmo que indiretamente, o trabalho docente passa a ser submetido a um maior controle por parte do Estado, justificado pelo discurso do incremento da qualidade na educação. Estabelecem-se critérios específicos para medir a qualidade das universidades, que devem conduzir a determinados resultados, os quais visam elevar os standards de qualidade do ensino. Considerando este cenário que se desenrola sob a égide da gestão da performatividade, assiste-se a uma profissionalização e reprofissionalização do professor, gerando contradições na compreensão e mesmo no desempenho de suas funções (Ball, 2005; Dias Sobrinho, 2005).
          Busca-se com isso, atender às expectativas do projeto neoliberal, que se constitui num conjunto de princípios e diretrizes operacionais que interfere em, praticamente, todos os países do ocidente. Trata-se, de fato, de um capitalismo mundializado. Organismos internacionais como a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o Banco Mundial, que formulam políticas de ajuste e de estabilização, defendem a ideia de que o desenvolvimento econômico, alimentado pelos avanços técnico-científicos, garante, por si só, o desenvolvimento social (Freitas, 2018; Libâneo, 2015).
          Baseado nessas diretrizes, o Banco Mundial vem propondo, ao mesmo tempo, descentralização de gestão e padronização de currículos e de sistemas de avaliação. Para essa finalidade, disponibiliza aos países mais pobres recursos mínimos, assessorias e informações, através de cursos e sites especializados, onde podem ser encontrados modelos e ferramentas para orientá-los. Estes instrumentos têm sido utilizados pelo processo de reforma da educação no Brasil, implantado a partir dos anos de 1990 (Cruz, 2003).
          Desde então, as instituições passaram a responder à pressão por resultados, essenciais ao sucesso num contexto em que os rankings definem a percepção de qualidade das instituições (Dias Sobrinho, 2010). Em meio a esse contexto, novas exigências passam a fazer parte do cotidiano docente, induzindo a processos de mudança. Que novas habilidades e competências vêm sendo exigidas dos professores para atuar nesse novo contexto? Quais são as estratégias utilizadas pelos gestores das instituições para a gestão do trabalho dos professores, em vista de fazer frente a essas exigências do sistema de avaliação? Como os professores formados, em sua maioria, num contexto de ensino tradicional e transmissivo, estão reagindo a essa nova realidade?
         A partir dessas indagações, com o presente estudo, almejamos compreender como os professores estão reagindo frente a essas transformações no exercício de sua profissão e os impactos desse processo na (re)construção da sua identidade. Ou seja, nos interessa observar como os professores vêm (re)construindo sua identidade e que elementos mobilizam para lidar com as situações que os consagram pelo bom desempenho, que os realizam e/ou que os desgastam e os pressionam como profissionais, considerando, inclusive, as estratégias das instituições em sua busca por atingir os parâmetros da avaliação a que estão expostas.

Metodologia

O presente estudo, do ponto de vista dos seus objetivos, caracteriza-se como uma pesquisa descritiva, isto é, que prioriza a descrição pormenorizada do fenômeno em estudo (Gil, 2010). A abordagem e quantitativo, visto que prioriza elementos e indicadores traduzidos em dados quantificáveis (Richardson, 2014). Está delineado como um levantamento do tipo Survey (Pinsonneault e Kraemer, 1993). Quanto ao locus da pesquisa, o estudo foi desenvolvido em três instituições de Ensino Superior localizadas na região Sul do Brasil, sendo uma instituição particular, localizada na cidade de Curitiba (PR), uma pública, localizada da cidade de Chapecó (SC), e uma comunitária, localizada na cidade de Lageado (RS). O objetivo dessa composição foi criar a possibilidade de observar como os fenômenos em estudo se comportam em instituições com diferentes naturezas jurídico-administrativas, pois essa diferença, essencial na definição das razões para a existência das instituições, acaba por influenciar a definição do foco prioritário de cada instituição.
          A pesquisa buscou levantar, junto ao corpo docente das instituições envolvidas, elementos sobre o modo como esses vêm reagindo (estratégias de adaptação e de resistência) frente às novas exigências feitas pelas instituições, em termos de exercício das suas atividades docentes, num contexto marcado pela lógica da performatividade. Além disso, buscou caracterizar as estratégias mobilizadas pela gestão dessas instituições para fazer frente às novas exigências de performatividade, dentro dos novos padrões exigidos pelo Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Superior (SINAES) (Brasil, 2004). Para a coleta de dados foram utilizadas três estratégias principais; em primeiro lugar, a análise documental, por meio da qual analisamos a evolução do desempenho das instituições nos indicadores do SINAES, no período entre 2013 a 2018, além dos registros disponíveis sobre o processo de formação continuada do corpo docente. Em segundo lugar, realizamos seis entrevistas com gestores de graduação e de pós-graduação das instituições pesquisadas, dois por instituição. Por fim, utilizamos um questionário (Survey), composto por questões abertas e fechadas, o qual foi enviado a todos os docentes das três instituições envolvidas. As questões fechadas foram de diferentes tipos, desde questões de duas ou de múltipla escolha até de questões cujas respostas fazem uso de escala Likert de cinco pontos.
          O questionário foi enviado, por meio do software Survey Monkey, a 852 docentes. Retornaram 164 questionários respondidos, sendo 56 oriundos da instituição pública (34.78%), 33 oriundos da instituição comunitária (19.25%) e 75 oriundos da instituição privada (45.96%). O questionário ficou disponível para a resposta dos docentes por um período de 30 dias, entre os meses de março e abril de 2019. É importante esclarecer que, por um problema técnico, ligado à instituição comunitária, o questionário ficou disponível, nessa instituição, por apenas 12 dias, o que justifica a disparidade no número de retornos em relação às outras duas instituições.
          Para a análise dos dados de natureza qualitativa, utilizamos a análise de conteúdo (Bardin, 2016) e para a análise dos dados de natureza quantitativa nos valemos da estatística descritiva, a partir dos conceitos de média, moda e mediana. Contudo, dado que os resultados e as análises apresentadas neste artigo, focaram-se quase que exclusivamente em dados quantitativos, não descrevemos, aqui, em detalhes, o processo da análise de conteúdo.

Transformações na universidade: performatividade e identidade docente

A universidade contemporânea vivencia um momento de grandes transformações; pressionada pelas mudanças originadas na reconfiguração dos processos produtivos e da globalização e, cada vez mais, marcada pela expansão e privatizações, necessita enfrentar novos desafios e, com isso, tem sido chamada a inovar (Bianchetti e Sguissardi, 2017).
          Ao acompanharmos os movimentos das políticas educacionais e das ações dos governantes, é possível perceber o que Ball (2005) denomina de instauração de uma nova cultura da performatividade competitiva. Notamos que a área educacional tem se utilizado, cada vez mais, de uma visão mercadológica em suas políticas e podemos perceber que a educação tem sido pensada pela lógica da produtividade, pela relação custo-benefício.

Sobre a educação na lógica da performatividade

Ao longo das últimas décadas, as instituições de ensino e, consequentemente, os professores têm sido confrontados com novos desafios, relacionados, sobretudo, ao alargamento das suas responsabilidades e à complexificação dos seus papéis (Enguita, 2004). Isso vem ocorrendo principalmente, em virtude dos contextos multiculturais em que desenvolve seu trabalho; das novas demandas do setor produtivo em termos de formação das pessoas; da expansão das suas funções nas instituições, as quais ultrapassam o âmbito da sala de aula e da sua disciplina, para interagir com a sociedade e o mundo produtivo; da crescente influência das mídias na educação e do aumento de oportunidades para aprender fora da escola, a partir do desenvolvimento das tecnologias digitais (Ballet et al., 2006; Day, 1999; Eacute e Esteve, 2000). Há de se considerar também, ou até principalmente, a crescente burocracia e a necessidade prestação de contas ao escrutínio público a que passaram a ser submetidos, no contexto da lógica do gerencialismo e da performatividade (Avelar e Ball, 2019; Ball, 2005).
          Neste cenário, a educação se desenvolve atrelada às demandas do sistema capitalista, contando, para isso, em cada país, com a mediação das regulamentações do Estado. Nesse contexto de globalização, conforme destacam autores como Afonso (2013), Bernheim e Chauí (2008), Santos (2002), dentre outros, são necessárias notórias redefinições no papel do Estado e do mercado, as quais também influenciam transformações na educação. Estas transformações vão desde a intensificação nos processos de avaliação até a incorporação, nos sistemas de ensino, de uma cultura da performatividade, que fomenta repercussões nos processos de gestão universitária, nos referenciais da política de educação superior e seus processos de avaliação e financiamento.
          A lógica da performatividade que, nas sociedades pós-modernas, tem estado presente no debate educacional refere-se a dispositivos de controle e mudanças no desempenho e na ação de instituições e sujeitos, medidos por critérios de eficiência e funcionalidade técnica a partir de classificações, avaliações e diferenciações (Ball, 2005).
          Ao acompanharmos os movimentos das políticas educacionais e das ações dos governantes, é possível perceber o que Ball (2005) denomina de instauração de uma nova cultura da performatividade competitiva. Notamos que a área educacional tem utilizado, cada vez mais, uma visão mercadológica em suas políticas e podemos perceber que a educação tem sido pensada pela lógica da produtividade e pela relação custo-benefício.
          A performatividade pode ser sintetizada como um princípio de eficácia, que atua como uma forma de controle indireto ou à distância, que substitui a intervenção e a prescrição pelo estabelecimento de objetivos, pela prestação de contas, pela comparação e pela análise do desempenho. Está voltada ao contexto da mercantilização do saber e do aumento da concentração do poder na sociedade. Podemos dizer que, na cultura da performatividade, o valor da educação situa-se fora do campo da própria educação, na troca por emprego, prestígio e conforto. O valor da educação está vinculado menos ao conhecimento do que aquilo que, potencialmente, esse conhecimento pode conquistar na sociedade (Dias Sobrinho, 2005).
          Tal alinhamento é possível a partir da ação de organizações multilaterais como o Banco Mundial, a OCDE, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Fundo Monetário Internacional (FMI), que são instituições dominadas por governos e banqueiros de países capitalistas importantes (Cruz, 2003).
          A elevada competitividade que a educação superior enfrenta, faz que as instituições busquem novas formas de garantia ou melhoria nas condições de sobrevivência, e essa competitividade deixa de ser apenas local, mas alarga as suas fronteiras e avança para outros países.
          Nesse sentido, a relação entre políticas educacionais e práticas institucionais manifesta-se na articulação entre a dinâmica capitalista, em consonância com a performatividade, reservando à docência universitária contornos decorrentes da regulação do Estado (Freitas, 2018; Silveira e Bianchetti, 2016).
          Influenciada por essas transformações sociais e educacionais, a partir da década de 1990, a educação brasileira contou com inúmeras discussões acerca da profissão docente e da necessidade de formação de um novo educador, capaz de acompanhar as transformações tecnológicas, atendendo às exigências de um novo tempo.
          O modelo de formação que os professores recebiam nas universidades e nos cursos de nível médio passou a ser questionado, principalmente, quanto à adequação ao tipo de profissional exigido pelo mercado de trabalho, que passava por modificações, em função do intenso desenvolvimento das tecnologias, bem como da reordenação do capitalismo (Cunha, 2010; Gatti e Barretto, 2009).
          Nesse sentido, a exigência de profissionais mais qualificados e flexíveis, capazes de lidar com os novos aparatos tecnológicos e de responder, de modo ágil e criativo, aos problemas que surgem durante a execução do trabalho, constitui a nova performance a ser seguida.
          As políticas educacionais, oriundas das metamorfoses do mundo globalizado, estão dando respostas ao processo de reformas, regulações e regulamentações direcionadas, mais especificamente, à formação continuada e, consequentemente, estão transformando o trabalho e a identidade docente. As identidades docentes passaram a ser influenciadas por discursos que evidenciam novas habilidades e competências (Costa, 2006).
          Segundo Garcia (2010), os discursos que almejam por mudança, alteram a atuação do professor, conduzindo-o a acreditar que, sem uma atuação em que dedique esforço e dedicação máxima, as mudanças e melhorias esperadas pela sociedade não serão alcançadas. Deposita-se, assim, nos ombros dos docentes, a responsabilidade pela eficácia e qualidade da educação.
          Essa cultura afeta o processo de avaliação do sistema educacional, que passa a trabalhar com novos critérios e a exercer pressões a partir de avaliações externas. Esta visão corrobora a construção de uma cultura que privilegia a avaliação constante na busca por resultados que, consequentemente, causa impactos no desenvolvimento da prática pedagógica em a sala de aula e determina o surgimento de mecanismos de autorregulação do trabalho docente.

Identidade docente

Partimos da compreensão de que os docentes constroem suas identidades pessoais e profissionais a partir dos contextos em que estão inseridos e em interação com os grupos profissionais de que passam a fazer parte. Entende-se que a construção da identidade docente é de um processo integrado, dinâmico, flexível, influenciado pelas demandas do contexto social de cada momento e época (Garcia et al., 2005; Nóvoa, 1991). Dubar (2009: 136) conceitua a identidade como: “resultado a um só tempo estável e provisório, individual e coletivo, subjetivo e objetivo, que, conjuntamente, constroem os indivíduos e definem as instituições”.
          Trata-se de um fenômeno complexo, que incorpora uma dimensão individual, entendida normalmente, como núcleo da personalidade e uma dimensão coletiva, que remete o conceito de identidade para um nível de análise grupal ou coletivo. Embora essas dimensões tendam a ser tratadas de forma isolada, será mais indicado considerar a sua interdependência: o individual necessita do reconhecimento do coletivo e o coletivo necessita da capacidade de intervenção do individual. Dubar (2009: 110) afirma que “não se faz a identidade das pessoas sem elas e, contudo, não se podem dispensar os outros para forjar a sua própria identidade”. Ou seja, a identidade pessoal incorpora o social, os outros dentro de si, sem com isso reduzir a identidade coletiva a uma qualquer medida de agregação de identidades pessoais coexistentes.
          O mesmo autor salienta que a identidade é o resultado de uma dupla operação, diferenciação e generalização. A diferenciação é o ato de definir-se como diferente, “o que constitui a singularidade de alguma coisa ou de alguém relativamente a alguém ou a alguma coisa diferente: a identidade é então, nesse sentido a diferença” (Dubar, 2009: 13). De outro lado, a generalização, que possibilita ao indivíduo identificar-se com aspectos comuns de dado grupo, nesse caso, a identidade é o pertencimento comum. Essas operações, diferenciação e generalização, criam um paradoxo: o que há de único e o que é partilhado. Sob essa perspectiva, para Dubar (2009), não existe identidade sem alteridade; ou seja, o indivíduo se constitui a partir do olhar do outro, em um determinado tempo e contexto. Em outras palavras, a identidade é um processo de construção, dentro de um contexto histórico-social do indivíduo, na articulação de atos de atribuição (do outro para si) e de pertença (de si para o outro), em um movimento contínuo e permanente (Dubar, 2009).
          No mesmo horizonte, Nóvoa (1995) estuda os processos de identidade do profissional docente valendo-se do conceito de processo identitário, entendido como “um processo único e complexo graças ao qual cada um de nós se apropria do sentido da sua história pessoal e profissional” (Nóvoa, 1995: 16). Para o autor, a identidade profissional não é “um dado adquirido, não é uma propriedade, não é um produto. A identidade é um lugar de lutas e de conflitos, é um espaço de construção de maneiras de ser e estar na profissão” (Nóvoa, 1995: 16). Como se pode observar, as ideias dos autores convergem quanto ao movimento dinâmico que promove a constituição do sujeito.
          O mundo atual tem sido moldado pelas tendências da globalização e as alterações sociais daí resultantes estendem-se a vários campos, repercutindo nomeadamente na conceitualização da identidade. Bendle (2002) associa essas transformações a uma crise contemporânea da identidade, que se apresenta, simultaneamente, como expressão da crise da sociedade e crise da teoria. Isso porque, por um lado, ao enfatizar a importância crucial da identidade para o bem-estar pessoal e para a ação coletiva, e por outro, teoriza-se a identidade como algo fluido, em construção, múltiplo, dinâmico e fragmentado.
          Na compreensão de Hall (2000), faliram as velhas identidades tidas como fixas no mundo social de antigamente, pois, diante da mudança estrutural das sociedades do século XX, novas concepções emergem, mudando os conceitos de classe, de gênero, de sexualidade e de etnia, sendo alteradas, com isso, as identidades pessoais. O reflexo disso incide num deslocamento do sujeito, que o faz perder o sentido de si mesmo e do seu lugar no mundo social e cultural.
          Tal situação desencadeia um estado de crise, levando ao sujeito a conviver com instabilidades, incertezas e dúvidas. Em função dessa crise, gerada pelas transformações de paradigmas, o sujeito passa, inevitavelmente, por processos de desconstrução de valores, culturas, concepções, crenças e saberes, tradicionalmente incorporados; modificando, portanto, o seu ser, para agregar novos modos de saber e de construir-se socialmente, ou seja, de ser. Deste modo, estamos num momento de profundos questionamentos e dúvidas sobre a identidade docente; de um lado, temos os discursos e estratégias diversas de pressão que buscam modelar o agir o docente e, de outro, temos sujeitos que se debatem num turbilhão de sensações contraditórias.
          O ensino é, atualmente, tido como a chave para novas formas de aprendizagem, para o incremento de novos conhecimentos que buscam elevar o nível de sucesso dos alunos nas novas formas de organização do trabalho e da produção que, por sua vez, vivem aceleradas transformações, num ambiente focado na inovação. Desta forma, na medida em que o ensino se torna mais complexo e voltado a viabilizar o sucesso no/do modelo competitivo, de uma economia altamente exigente, passa a ser verificado, julgado e avaliado mais frequentemente.
          As novas políticas educativas requerem novos tipos de professores, com novas competências. A substituição do conceito de qualidades no anterior critério, pelo de atitude, constitui uma alteração significativa. Esta pesquisa visa compreender a identidade docente, essa mobilização de mudanças que, para muitos professores, principalmente aqueles que estão no magistério há muito tempo, pode tornar-se um problema e gerar sentimentos contraditórios, incluindo o sentimento de estranhamento e mesmo de exclusão. Para outros, no entanto, as crises podem levá-los a refletir, desafiar-se e a buscar novas formas de atuação profissional. Compreender o modo como os professores universitários, expostos a tais transformações, vem reagindo diante no novo cenário, pode auxiliar na definição de iniciativas institucionais e organizativas, bem como políticas públicas que auxiliem os professores a reelaborar sua identidade e encontrar novos modos de significação de sua profissão focadas na realização profissional, pessoal e coletiva e, quiçá, encontrar caminhos para garantir a construção de caminhos para uma sociedade democrática e inclusiva.

Mapeamento e descrição de tendências

Participaram deste estudo 164 docentes, 34.78% da instituição pública, 45.96% da instituição privada e 19.25% da instituição comunitária. As áreas do conhecimento a que os docentes participantes estão vinculados, em sua maioria, são: Ciências da Saúde (30.86%), Ciências Humanas e Jurídicas (14.81%) e Cursos de Licenciatura (14.20%). Ainda outras seis áreas tiveram representatividade, porém, com percentual menor de docentes. No que se refere à área de atuação principal na IES, 88.82% apontaram o ensino, 10.56% a pesquisa e 0.62% a extensão. Desses docentes, 8.02% possuem a titulação de pós-doutorado, 47.53% são doutores, 32.72% são mestres, 10,.9% são especialistas e 1.23% são graduados.
          A principal atuação (a qual dedicam a maior parte de sua carga horária) apontada pelos docentes foi a graduação (75.31%), seguido da pós-graduação (8.02%) e gestão (11.73%). Outros 4.94% dos docentes participantes desempenham funções técnicas. A maioria relatou atuar como docente na educação superior há mais de cinco anos; 23.46% atuam há mais de cinco e no máximo 10 anos e 35.80% há mais de 10 anos e no máximo 20 anos.
          Acerca da jornada de trabalho na instituição, verificou-se que a maioria dos docentes participantes (63.58%) trabalha em regime de tempo integral, 27.16% em regime de tempo parcial e apenas 9.26% são horistas. Essa dimensão aponta que as três instituições pesquisadas atendem aos requisitos estabelecidos no Decreto nº 5.773/06, apresentando disponibilidade de regime de trabalho e titulação docente superior ao descrito na legislação. Mais especificamente, a partir dos dados disponibilizados para nossa consulta, verificamos que a instituição privada e a comunitária atendem ao requisito de dispor de um terço do corpo docente, pelo menos, com titulação acadêmica de mestrado ou doutorado e um terço do corpo docente em regime de tempo integral. Já na instituição pública este quantitativo é bem superior ao mínimo estabelecido no âmbito do SINAES, em que a titulação docente atinge 80% de doutores.
          Em relação à atuação profissional, 53.09% dos entrevistados relataram trabalhar exclusivamente na docência, e outros 22.84% dedicam a maior parte do seu tempo atuando na docência. Em contrapartida, observamos que a maioria (84.66%) já atuou em outras atividades profissionais antes de se tornar docente. Nesta mesma linha, 64.81% dos docentes indicaram que seu ingresso na docência se deu por uma opção de vida, enquanto 32.10% apontam que ingressaram na docência por uma oportunidade que surgiu, sem ter planejado este caminho.
          Diante do cenário acima descrito, buscamos averiguar como os professores envolvidos na pesquisa concebem o papel do professor na atualidade. Sobre isso, observamos que 46.34% dos professores participantes entendem que o papel do professor como um mediador entre os estudantes e o conhecimento, enquanto 31.71% entendem que o professor é um facilitador em situações de aprendizagem e 10.37% entendem que o professor é, acima de tudo, um conselheiro e um mentor para os estudantes. Como se pode verificar na tabela 1, apenas 6.71% continuam a perceber que ser professor é, principalmente, transmitir conhecimentos. Conforme os dados indicam, houve, então, nas últimas décadas, uma transformação significativa na forma dos professores universitários perceberem papel e a sua própria identidade ou a identidade para si (Dubar, 2009).

          Os debates que vêm ocorrendo desde os anos 90 do século XX, sobre o sentido, o lugar e o papel da educação, no contexto da 3ª e 4ª revoluções industriais e, particularmente, os debates em torno do papel da universidade nesse novo contexto (Audy, 2006; Bernheim e Chauí, 2008; Etzkowitz, 2009; Fava, 2014; Santos, 2002; dentre outros), com todas as suas nuances e seus desdobramentos no que se refere às questões metodológicas do ensino, não passaram despercebidos pelos professores universitários, os quais passaram a incorporar, em suas representações sobre a docência a ideia de um novo papel do professor, o que, pelo visto, levam a outro entendimento sobre a própria identidade docente.
          Da análise da literatura, contrapondo-a com os dados coletados na pesquisa, apontamos um conjunto de fatores que fazem parte do cotidiano das IES e tem relação com o ensino como profissão, no contexto das reformas educativas (e da performatividade) ao longo dos últimos anos, os quais têm implicações para com a identidade docente:

  1. A necessidade de um maior profissionalismo docente, ao mesmo tempo que estudos evidenciam que os professores estão enfrentando um processo de desprofissionalização, na forma de uma intensificação do seu trabalho, como resultado do currículo imposto externamente e de sistemas de monitorização, de avaliação e supervisão, tornando o ato educativo cada vez mais complexo (Almeida et al., 2019).
  2. Novas abordagens de aprendizagem. Embora se reconheça que repensar a prática da sala de aula é uma tarefa bastante exigente, de um modo geral, poucos recursos são alocados para apoiar a aprendizagem dos professores. A pesquisa com os docentes apontou que estes entendem como positiva a utilização de novos recursos na organização e desenvolvimento das aulas. Ocorre que os dados coletados indicam que uma parcela ainda limitada tem-se valido de novos recursos e novas estratégias de ensino. A tradicionalidade no desenvolvimento das aulas ainda é muito evidente, demonstrando que as instituições precisam fomentar a capacitação docente em relação às novas tendências tecnológicas e metodológicas. Nesta pesquisa isso fica bem claro, pois menos de 50% dos docentes sinalizam a utilização de novas ferramentas metodológicas e tecnológicas para o ensino.
  3. Faz-se a exortação do ensino como atividade autônoma, ao mesmo tempo que este se situa num contexto de maior vigilância e supervisão, numa lógica de prestação de contas em regimes baseados em padrões e performances. Ou seja, o ranqueamento se tornou uma referência para as instituições organizarem suas estratégias. As instituições e os professores que não se inserirem neste contexto, provavelmente estarão fadados ao insucesso.

          Observando esses elementos, é possível perceber que, de um modo geral, a partir das reformas educacionais, o trabalho dos professores sofreu alterações no sentido de uma maior prestação de contas e maiores exigências de performatividade, o que têm afetado o modo de estar e viver a profissão docente. Existem visões distintas e até conflitantes em relação ao modo de olhar para o papel do professor na educação atual e isto tem afetado o seu sentido de profissionalismo e as suas identidades profissionais.
          No que se refere à percepção dos professores sobre a sua identidade e exercício profissional, alguns pontos merecem destaque:

  • A maioria (64.81%) investiu na preparação para a carreira docente e 87.12% pretende seguir nela, mesmo que de modo parcial, conciliando com outras atividades profissionais.
  • Diante das transformações tecnológicas, políticas e sociais, a maioria dos professores consultados (90.24%) entende que o exercício da docência se tornou mais complexo, desafiador e difícil, o que tem suscitado a busca por aprimoramento e formação continuada.
  • Majoritariamente (88.42%), os professores pesquisados reconhecem a ocorrência de profundas transformações no exercício da docência, distanciando-se da ideia do professor transmissor de conhecimentos e aproximando-se da ideia de mediação entre o aluno e o conhecimento e um facilitador em situações de ensino-aprendizagem.
  • Na mesma proporção, entendem que as estratégias de ensino também vêm se transformando. Porém, apesar de conhecer novas estratégias e técnicas de ensino, a maioria ainda continua a recorrer a estratégias de ensino mais ligadas a uma concepção tradicional de docência.
  • Apesar de 77% dos docentes pesquisados afirmar que a docência, na atualidade, tornou-se mais estressante, além de mais difícil e desafiadora, a grande maioria (79.25%) mantém sentimentos e emoções positivas em relação à docência e afirmam não se sentir pressionados a adaptar-se aos novos parâmetros de desempenho definidos pelo SINAES.
  • Ao buscar compreender essa forma de reagir, observamos que menos da metade dos professores pesquisados tem conhecimento dos novos parâmetros exigidos pelo SINAES. Além disso, as intervenções feitas na contratação e gestão do corpo docente, principalmente pela IES privada, bem como as atividades de capacitação desenvolvidas, podem ter tido influência na percepção dos docentes sobre esse novo contexto do exercício da docência.

          Além de compreender que o papel do professor se alterou nos últimos anos, a ampla maioria dos docentes (91.67%) sinalizou que as estratégias de ensino também se modificaram ao longo do tempo e apenas 8.33% apontam que permanecem inalteradas. Em contrapartida, ao ser solicitado que indicassem quais estratégias de ensino são, por eles, mais utilizadas, verificou-se que as estratégias de ensino alinhadas com uma metodologia tradicional (como aulas expositivas, por exemplo) foram predominantes, atingindo 88.05%.
          De acordo com os dados obtidos na pesquisa, os docentes, em sua maioria (54.26%), sentem-se motivados ao entrar na sala de aula. Não lhes faltam disposição e bem-estar. Apenas 35.37% sinalizam sentimentos de ansiedade, fadiga e sofrimento, sendo que este último aparece com apenas 1.83% de referência. Dentre as instituições, a instituição privada é o local onde os índices de alegria e disposição são maiores, atingindo 48% dos docentes. Já na instituição pública este índice fica em 25.78% e na comunitária, 39.39%. Em relação à fadiga e angústia, a IES pública apresenta o maior percentual, 26.79%, enquanto na privada fica em 10.67% e na comunitária, 15.15%.
          Por outro lado, quando indagados se, em face das crescentes exigências por resultado, sentem-se inseguros em relação à profissão, apenas 15.24% responderam afirmativamente e outros 23.78% afirmaram concordar parcialmente que se sintam mais inseguros. Ou seja, majoritariamente, os professores afirmaram que as exigências por resultados não lhes causam insegurança. A maior proporção de professores que afirma sentir-se mais inseguro em relação à profissão, face às exigências por resultado, foram aqueles vinculados à IES comunitária (50% de respostas afirmativas), enquanto aqueles vinculados à IES pública foram os que apresentaram a menor proporção de respostas afirmativas.
          Outro aspecto a ser observado na busca pela compreensão da percepção dos professores sobre as transformações em curso na educação superior, e os impactos sobre a identidade e o exercício da docência é o fato de que, majoritariamente, os docentes responderam que, mesmo com todas as mudanças ocorridas e com os esforços feitos pela gestão das instituições para a obtenção de um bom desempenho performativo, os professores não se sentem mais valorizados. Do total de respondentes, 63.42% discordam total ou parcialmente que tenha havido uma maior valorização dos professores a partir da implementação da nova lógica de gestão das IES. Apenas 2.44% concordam totalmente e 21.95% concordam parcialmente que tenha havido uma maior valorização do professor a partir das transformações em curso.
          Buscando comparar os dados obtidos na presente pesquisa com a realidade observada em outros estudos, recorremos ao estudo de Queiroz (2014), que realizou um amplo levantamento bibliográfico com o objetivo de investigar os sentidos discursivos sobre “mal-estar e bem-estar docente”, em referência ao professor universitário, produzidas em pesquisas dos programas de pós-graduação em educação do Brasil, num recorte entre os anos 2000-2011. Em suas conclusões, a pesquisadora identifica que, apesar de toda atenção e reconhecimento verificados fora da universidade, no cenário das pesquisas em educação, os professores têm sido pouco estudados. Enfatiza que “salta aos olhos” a pequena quantidade de trabalhos que fazem referência aos professores. Logo, a possibilidade de comparar os índices de bem-estar docente, no ensino superior, fica prejudicada. Em sua análise, no recorte estabelecido, foram identificados nove trabalhos, dentre os quais apenas um articula com clareza o mal-estar docente e o bem-estar docente numa totalidade. Com base no posicionamento epistemológico que a sua pesquisa assumiu, compreendeu que o mal-estar e o bem-estar docente são manifestações subjetivas produzidas pelos sujeitos em suas relações sociais, em seu processo de vida real. São, portanto, produtos históricos, condicionados pelas práticas sociais e pelos próprios sujeitos nelas envolvidos (Queiroz, 2014).
          Observa-se, assim, que, a julgar pelos dados colhidos no presente estudo, os professores que atuam na educação superior, mesmo que experimentem transformações profundas no seu modo de agir e nas exigências e pressões sobre o seu trabalho, conseguem manter, predominantemente, uma atitude positiva frente à profissão. Esse dado mostra discrepância com os resultados de estudos envolvendo professores da educação básica (Esteve, 1999; Flores, 2011). Foge aos objetivos do presente estudo encontrar as razões desse fato. Porém, entendemos ser importante levantar, ao menos, algumas considerações acerca de situações que podem auxiliar na compreensão desse fenômeno.
          Segundo nossa percepção, ao longo da pesquisa, o trabalho realizado nas estratégias de contratação e capacitação docente pode ter influenciado essa realidade. Na IES privada, por exemplo, no momento em que a instituição, após um período de grandes dificuldades financeiras e redução do número de estudantes, realizou um processo de ajustes administrativos e pedagógicos, apresentou a cada um dos seus docentes o novo projeto de instituição, apontando as novas diretrizes pedagógicas e administrativas, com as quais almejava uma elevação constante no seu Índice Geral de Cursos (IGC) nos próximos ciclos avaliativos, até alcançar o IGC 5. Todos os docentes foram convocados a engajar-se neste projeto. Os que não se sentiam confortáveis com a política de performance implantada, desligaram-se ou foram desligados da instituição. Além disso, nesta instituição foram e continuavam, no momento da realização da pesquisa, sendo realizadas inúmeras capacitações com temáticas relativas às novas tecnologias e metodologias educacionais.
          A IES comunitária, por sua vez, mesmo não tendo adotado uma estratégia explícita de convocação dos docentes a aderir ao projeto institucional, desde longa data, vem desenvolvendo atividades de formação para a docência. A IES pública, por sua vez, pela sua natureza e forma de estruturação das atividades de gestão, não desenvolve esse tipo de intervenção, bem como não foram realizadas atividades de capacitação para o exercício da docência.
          Tais ações talvez tenham influenciado a percepção do corpo docente sobre a docência, pois os docentes da IES privada foram os que apresentaram maiores índices de respostas positivas acerca da percepção da docência como uma atividade prazerosa, bem como de emoções e sentimentos positivos em relação à docência (alegria, disposição, bem-estar). No outro extremo, os docentes da IES pública foram os que manifestaram os menores índices de respostas positivas em relação à percepção da docência como uma atividade prazerosa, bem como de emoções positivas em relação à docência (alegria, disposição, bem-estar), além de apresentar os maiores índices de respostas em relação a emoções negativas (ansiedade e fadiga).
          Outro dado importante para auxiliar na compreensão das percepções do corpo docente sobre as condições atuais de exercício da docência e os impactos sobre sua identidade é a observação da sua relação com os esforços feitos pelas instituições para atender às demandas do SINAES em termos de desempenho, na lógica da performatividade. Questionamos os professores se conheciam os parâmetros e os instrumentos de avaliação exigidos por este sistema. Observamos que menos da metade (47.74%) dos respondentes sinalizaram conhecer o SINAES, enquanto 52.26% afirmaram desconhecê-lo.
          Também foram questionados se têm participado de ações institucionais voltadas à melhoria do desempenho da instituição e dos estudantes, frente às avaliações realizadas pelo SINAES e a proporção dos que responderam afirmativamente é ainda menor. Do total de respondentes, apenas 43.23% informaram ter participado das referidas ações institucionais, enquanto 56.77% afirmaram não ter participado. Este dado, de certa forma, é coerente com as falas dos gestores, os quais relataram dificuldades em obter o engajamento dos docentes, por estes não perceberem a importância dos sistemas avaliativos para a instituição, bem como a importância de realizar ações de fomento nesta seara. Esse dado pode auxiliar na compreensão do impacto relativamente baixo da lógica da performatividade, a que estão expostas as IES em estudo, sobre o exercício da docência e a baixa incidência de sentimentos e emoções negativas dos professores em relação a essa.
          É interessante observar que analisando as respostas por instituição, em relação ao envolvimento com o SINAES, percebemos não haver diferenças muito significativas entre as respostas de cada uma delas. Ou seja, há um equilíbrio entre as IES em relação ao fato de os docentes desconhecerem os parâmetros avaliativos do SINAES. Observamos, inclusive, que a proporção dos que conhecem os parâmetros do SINAES é maior na instituição pública e menor na instituição comunitária, como se pode observar na tabela 2.


          As agendas das reformas educativas introduziram novas formas de controle e de prestação de contas nas IES, com o sentido de regular e de monitorar o trabalho dos professores. Os discursos e as exigências da prestação de contas e, consequentemente, da performatividade dominam o setor educativo no sentido de tornar mais transparente e visível o trabalho das instituições e dos docentes. Contudo, nos três casos estudados, esse controle ainda parece ser bem tênue, não atingindo a maior parte das pessoas, pois, conforme observamos, 52.26% dos docentes pesquisados afirmaram desconhecê-lo.
          Deste modo, conforme já apresentamos anteriormente, a performatividade caracteriza as ações políticas, com uma ênfase crescente na qualidade e nos resultados, na eficácia e na eficiência e têm levado a uma visão de educação como “mercadoria, no mercado cada vez mais internacional” (Kelchtermans, 2009: 64). À luz dessa forma de ver a educação, o trabalho dos professores é julgado, muitas vezes, com base numa perspectiva restritiva instrumental, baseada em resultados, em função de padrões nacionais, nos países onde eles existem.
          Diante desse cenário, ao professor universitário está posto o desafio de superar concepções que tentam reconfigurar a docência como mera atividade técnico-instrumental. Conforme apontamos em diversos momentos da pesquisa, os impactos que as mudanças advindas com a globalização e a crise do sistema capitalista produziram na educação superior culminaram na redefinição da universidade como organização social, heterônoma, operacional e empresarial, alterando sua identidade e comprometendo tanto a forma quanto o produto de suas atividades essenciais. Assim, parece evidente que os impactos impostos pela performatividade sobre o exercício profissional do docente alteram sua identidade.
          Contudo, pelos dados levantados na presente pesquisa, a implementação dessa lógica de gestão do ensino e do trabalho dos professores, embora esteja em curso e seja perceptível em algumas ações institucionais, ainda não está plenamente inserida, pelo menos no que se refere ao engajamento docente.

Considerações finais

Segundo várias pesquisas que consultamos (Afonso, 2013; Ball, 2005; Bianchetti e Sguissardi, 2017; Esteve, 1999; Flores, 2011), a adoção de um novo modelo de organização social, induzida pelo neoliberalismo, sobre as políticas implementadas para a educação superior, trouxe ao docente, entre outras consequências, a imersão numa nova organização do trabalho e modificações no produto de seu trabalho (ensino e pesquisa, por exemplo).
          Num contexto, condicionado por essas políticas, o trabalho docente tende a perder seu sentido de práxis, convertendo-se em atividade puramente prática: realização de tarefas diversificadas, a serem cumpridas em ritmo acelerado, em horários atípicos, avaliada com índices de performatividade. Por outro lado, o professor tem sido apontado como “a chave” para solução dos problemas sociais e econômicos das sociedades atuais. Esse docente que o mercado educacional descreve é aquele docente “profissional, responsável, competente e competitivo”, necessário para preparar as novas gerações, para as novas condições de vida e de produção, sem perceber as contradições que o capitalismo gera.
          Desde o final do século XX, pesquisas (Esteve, 1999; Flores, 2011; Queiroz, 2014) têm alertado para o surgimento de um fenômeno recorrente denominado mal-estar docente, o qual indica dificuldades dos professores em reelaborar o sentido de sua profissão, ante as novas condições do seu exercício. A crise de identidade do professor significa, assim, uma crise de maneira de ser na profissão, que está exigindo dos professores, individual e coletivamente, a reelaboração do modo de ser e de perceber como profissional. Por outro lado, em que pese à necessidade de os processos educativos contribuírem com a viabilização dos processos produtivos vigentes, a partir das mais recentes revoluções industriais, não se pode renunciar à possibilidade de serem espaços de debate e desenvolvimento da diversidade de ideias e pontos de vista. Nesse contexto, os processos de avaliação em larga escala, mesmo tendo sua importância, não podem ser a única referência para avaliar a qualidade do ensino, sob o risco de se transformar em instrumento de julgamentos estreitos que patrocinem tentativas de desgaste da imagem da educação pública e justificativa para transferi-la à iniciativa privada.
          Parece claro que, em termos de tendência de desenvolvimento, o Brasil vem traçando um caminho apoiado em experiências internacionais, principalmente no tocante ao desenho das políticas em curso. Estas políticas reconfiguram o cenário da educação superior e, consequentemente, atingem a figura do professor, que em muitos casos sentem-se perdido, deslocado, pressionado e indefeso.
          Nas experiências estudadas no curso da presente pesquisa, contudo, a maior parte dos professores, mesmo percebendo a crescente complexidade do exercício da sua profissão e do aumento dos níveis de estresse no decorrer do seu exercício, continuam a nutrir sentimentos e emoções positivas em relação à docência e projetam permanecer nela nos próximos anos. As políticas de contratação e de gestão do corpo docente desenvolvidas pelas instituições estudadas, assim como o fato de que a maior parte dos participantes da pesquisa afirmar ignorar os critérios de avaliação do SINAES e uma proporção maior ainda informar não ter, no seu dia a dia, nenhuma participação nas estratégias institucionais voltadas a elevar os escores atingidos por seus estudantes no Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade), podem ajudar a explicar o fenômeno. Percebe-se, assim, inclusive, que, embora esteja em curso um processo de transformação institucional, pedagógico e político, alinhado ao ideário neoliberal, esse processo ainda não logrou êxito em alinhar os professores, em plenitude, à lógica da performatividade. Ainda assim, é preciso alertar que os resultados aqui apresentados, mesmo que possam contribuir significativamente para a compreensão de outras experiências similares, dadas as especificidades dos contextos das instituições aqui estudadas, apresentam limitações do ponto de vista de sua generalização para outros contextos e situações.

*Alcione Ziliotto
Brasileira. Mestre em Educação, Universidade Comunitária da Região de Chapecó (UNOCHAPECÓ), Brasil. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa "Pormação de Prefessores, Currículo e Práticas Pedagógicas" e Procuradora Educacional Institucional, UNOCHAPECÓ, Brasil. Temas de pesquisa: formação de professores, práticas pedagógicas e gestão da educação. ORCID: http://orcid.org/0000-0003-0240-5784. alcionez@unochapeco.edu.br
Regresar

**Odilon Luiz-Poli
Brasileiro. Doutor em Educação, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Brasil. Professor do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Educação, Universidade Comunitária da Região de Chapecó (UNOCHAPECÓ), Brasil. Temas de pesquisa: formação de professores, inovação, tecnologias digitais e educação e gestão da educação. ORCID http://orcid.org/0000-0001-9036-1296. odilon@unochapeco.edu.br
Regresar


Referências

Afonso, Almerindo Janela (2013), “Mudanças no Estado-avaliador: comparativismo internacional e teoria da modernização revisitada”, Revista Brasileira de Educação, vol. 18, núm. 53, Rio de Janeiro, Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, pp. 267-284.
Almeida, Maria Isabel de, Selma Garrido Pimenta e José Cerchi Fusari (2019), “Socialização, profissionalização e trabalho de professores iniciantes”, Educar em Revista, vol. 35, núm. 78, Curitiba, Universidade Federal do Paraná, pp. 187-206.
Audy, Jorge Luis Nicolas (2006), “Entre a tradição e a renovação: os desafios da universidade empreendedora”, em Jorge Luis Nicolas Audy e Marília Costa Morosini (coord.), Inovação e empreendedorismo na universidade, Porto Alegre, EDIPUCRS, pp. 58-78.
Avelar, Marina e Stephen J. Ball (2019), “Mapping new philanthropy and the heterarchical state: The Mobilization for the National Learning Standards in Brazil”, International Journal of Educational Development, vol. 64, Amsterdam, Elsevier, pp. 65-73.
Ball, Stephen J. (2005), “Profissionalismo, gerencialismo e performatividade”, Cadernos de Pesquisa, vol. 35, núm. 126, São Paulo, Fundação Carlos Chagas, pp. 539-564.
Ballet, Katrijn, Geert Kelchtermans e Jeffrey John Loughran (2006), “Beyond intensification towards a scholarship of practice: analysing changes in teachers’ work lives”, Teachers and Teaching: Theory and Practice, vol. 12, núm. 2, London, Monash University, pp. 209-229.
Bardin, Lawrence (2016), Análise de conteúdo, São Paulo, Edições 70.
Bendle, Mervyn F. (2002), “The crisis of ‘identity’ in high modernity”, British Journal of Sociology, vol. 53, núm. 1, London, American Psychological Association, pp. 1-18.
Bernheim, Carlos Tünnerman e Marilena Souza Chauí (2008), Desafios da universidade na sociedade do conhecimento: cinco anos depois da conferência mundial sobre educação superior, Brasília, UNESCO.
Bianchetti, Lucídio e Valdemar Sguissardi (2017), Da universidade à commoditycidade: ou de como e quando, se a educação/formação é sacrificada no altar do mercado, o futuro da universidade se situaria em algum lugar do passado, Campinas, Mercado de Letras.
Brasil (2004), “Lei n. 10.861, de 14 de abril de 2004”, Institui o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior – SINAES e dá outras providências, Brasília, Diário Oficial da União.
Costa, Edinilza Magalhães (2006), “A Reforma na Formação de Professores: uma nova concepção de profissionalização”, em Paulo Sérgio de Almeida Corrêa (coord.), Políticas Educacionais, reformas curriculares e formação de professores nas produções científicas dos pós-graduandos em Educação da UFPA, Belém, EDUFPA, pp. 291-330.
Cruz, Elizabete Franco (2003), “Educação sexual e educação infantil nos relatos de profissionais que trabalham com a formação de educadoras de creche/pré-escola”, Pro-Posições, vol. 14, núm. 42, Campinas, Universidade Estadual de Campinas, pp. 103-117.
Cunha, T. M. M. C. (2010), Fortalecimento das políticas de valorização docente: diagnóstico de avaliação curricular de cursos presenciais de 2ª licenciatura que estão sendo oferecidos pela Universidade Federal de Pernambuco para o Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica do estado de Pernambuco, Brasília, UNESCO/CAPES.
Day, Christopher (1999), Developing teachers: the challenges of lifelong learning, London, Falmer.
Dias Sobrinho, José (2010), “Avaliação e transformações da educação superior brasileira (1995-2009): do provão ao Sinaes”, Avaliação: Revista da Avaliação da Educação Superior, vol. 15, núm. 1, Campinas, Universidade Estadual de Campinas, pp. 195-224.
Dias Sobrinho, José (2005), Dilemas de Educação Superior no mundo globalizado: sociedade do conhecimento ou economia do conhecimento?, São Paulo, Casa do Psicólogo.
Dubar, Claude (2009), A crise das identidades, São Paulo, Edusp.
Eacute, Jos e M. Esteve (2000), “The transformation of the teachers’ role at the end of the twentieth century: new challenges for the future”, Educational Review, vol. 52, núm. 2, London, Taylor & Francis Online, pp. 197-207.
Enguita, Mariano Fernandez (2004), Educar em tempos incertos, Porto Alegre, Artmed.
Esteve, José Manuel (1999), O mal-estar docente: a sala-de-aula dos professores e a saúde dos professores, Bauru, EDUSC.
Etzkowitz, Henry (2009), Hélice tríplice: universidade-indústria-governo – inovação em movimento, Porto Alegre, EDIPUCRS.
Fava, Rui (2014), Educação 3.0: aplicando o PDCA nas instituições de ensino, São Paulo, Saraiva.
Flores, Maria Assunção (2011), “Tendências e tensões no trabalho docente: reflexões a partir da voz dos professores”, Perspectiva, vol. 29, núm. 1, Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina, pp. 161-191.
Freitas, Luiz Carlos (2018), A reforma empresarial da educação: nova direita, velhas ideias, São Paulo, Expressão Popular.
Garcia, Carlos Marcelo (2010), “O professor iniciante, a prática pedagógica e o sentido da experiência”, Formação Docente – Revista Brasileira de Pesquisas sobre Formação de Professores, vol. 2, núm. 3, Belo Horizonte, Autêntica Editora, pp. 11-49.
Garcia, Maria Manuela Alves, Álvaro Moreira Hypolito e Jarbas Santos Vieira (2005), “As identidades docentes como fabricação da docência”, Educação e Pesquisa, vol. 31, núm. 1, São Paulo, Universidade de São Paulo, pp. 45-56.
Gatti, Bernardete Angelina e Elba Siqueira de Sá Barretto (2009), Professores do Brasil: impasses e desafios, Brasília, UNESCO.
Gil, Antônio Carlos (2010), Como elaborar projetos de pesquisa, São Paulo, Atlas.
Hall, Stuart (2000), A identidade cultural na pós-modernidade, Rio de Janeiro, DP&A.
Kelchtermans, Geert (2009), “O comprometimento profissional para além do contrato: auto- compreensão, vulnerabilidade e reflexão dos professores”, em Maria Assunção Flores e Ana Margarida Veiga Simão (coord.), em Aprendizagem e desenvolvimento profissional de professores: contextos e perspectivas, Mangualde, Pedago, pp. 61-98.
Libâneo, José Carlos (2015), Organização e gestão da escola: teoria e prática, São Paulo, Heccus.
Nóvoa, Antônio (1995), Os Professores e sua formação, Lisboa, Dom Quixote.
Nóvoa, Antônio (1991), Profissão professor, Porto Alegre, Porto.
Pinsonneault, Alain e Kenneth L. Kraemer (1993), “Survey research in management information systems: an assessement”, Journal of Management Information System, vol. 10, núm. 2, London, Taylor & Francis Online, pp. 75-105.
Queiroz, Vanderleida Rosa de Freitas (2014), O mal-estar e o bem-estar na docência superior e dialética entre resiliência e contestação, Goiânia, Universidade Federal de Goiás.
Richardson, Roberto Jarry (2014). Pesquisa Social: métodos e técnicas, São Paulo, Atlas.
Santos, Boaventura de Souza (2002). A globalização e as ciências sociais, São Paulo, Cortez.
Silveira, Zuleide Simas da e Lucídio Bianchetti (2016), “Universidade moderna: dos interesses do Estado-nação às conveniências do mercado”, Revista Brasileira de Educação, vol. 21, núm. 64, Rio de Janeiro, Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, pp. 79-99.


Cómo citar este artículo

Ziliotto, Alcione y Odilon Luiz-Poli (2024), “Performatividade e identidade do professor universitário”, Revista Iberoamericana de Educación Superior (RIES), vol. XV, núm. 42, DOI: https://doi.org/10.22201/iisue.20072872e.2024.42.1661 [consulta: fecha de última consulta].

Title: Performatividade e identidade do professor universitário
Author:
Subjects: identidade docente ; performatividade ; avaliação na educação superior ; políticas educacionais ; Brasil.
Is Part Of:
Revista Iberoamericana de Educación Superior (RIES), , Vol. 15(42),
p.020-036 [Peer Reviewed Journal]
Description: A presente pesquisa, organizada na forma de um estudo de caso em tres instituições brasileiras, objetiva analisar como os professores universitários estão reelaborando a sua identidade profissional frente às pressões e exigências das atuais políticas da educação superior. Identifica como tendência, que os gestores das instituições incorporaram muitos dos princípios que caracterizam o gerencialismo e a lógica da performatividade. Os professores percebem uma profunda transformação na docência, mais complexa e desafiadora, com mudanças significativas do seu papel e um aumento nos níveis de estresse. Ainda assim, ao avaliar sua experiência profissional, expressaram sentimentos positivos em relação à docência.
Publisher: Universia, IISUE-UNAM
Source: Universia, IISUE-UNAM
ISSN: 0163-9374 ;
E-ISSN: 1544-4554 ;
DOI: 10.22201/iisue.20072872e.2024.42.1661
©2024 La Revista Iberoamericana de Educación Superior.